domingo, 14 de outubro de 2012

O aeroporto da Copa que ainda não saiu do chão


Burocracia e atraso colocam em xeque a operação do aeroporto de São Gonçalo do Amarante, nas imediações de Natal. A obra, 100% privada, não tem sequer um pilar erguido

Ana Clara Costa, de Natal
Projeto aeroporto de São Gonçalo do Amarante, em Natal (RN)
Projeto da área de embarque do terminal de passageiros do aeroporto, em Natal - Divulgação
Muito se fala sobre o risco de as reformas nos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Campinas,leiloados em fevereiro à iniciativa privada, não ficarem prontas a tempo para a Copa do Mundo de 2014. O tema preocupa porque essas estruturas aeroportuárias serão algumas das principais ‘portas de entrada’ de estrangeiros no país – e partirá delas boa parte dos voos regionais para outras sedes dos jogos. Contudo, há outras situações preocupantes e mais esquisitas em relação às obras no setor. Nos arredores de Natal, no Rio Grande do Norte, um aeroporto que tem de ser construído do zero para ser inaugurado antes do Mundial ainda não possui sequer um pilar levantado – e a previsão de entrega da obra pronta é maio de 2014, ou seja, dentro de 19 meses. Trata-se do Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante, a dez quilômetros da capital potiguar. O projeto, assim como grande parte do pacote de obras em Natal para o Mundial, está em estágio inicial e aparentemente não terá sua conclusão dentro do prazo.
O aeroporto de São Gonçalo do Amarante é um projeto emblemático. Foi idealizado em 1996 pela Infraero – estatal que administra a maioria dos aeroportos brasileiros – e pelo Exército. Ao longo de quinze anos, a dupla tentou executar a obra, mas sem sucesso. Em 2010, diante da saturação do aeroporto Augusto Severo, em  Parnamirim (RN), e a escolha da cidade como sede da Copa, o governo federal decidiu testar uma fórmula audaciosa: a privatização completa do novo aeroporto como forma de tentar fazê-lo sair do papel. O leilão ocorreu em junho de 2011 e a obra foi arrematada pelo Inframérica – o mesmo consórcio que, no início deste ano, saiu vencedor na licitação do Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, em Brasília. Formado pela empresa brasileira Engevix e a argentina Corporación América, o grupo pagou 170 milhões de reais para tocar o projeto no Rio Grande do Norte – valor que representou um ágio de 228,82% sobre o lance mínimo fixado pelo Palácio do Planalto. Inicialmente, a obra deveria ser entregue apenas no final de 2014, mas o consórcio resolveu adiantá-la para lucrar com a operação durante o Mundial.
Em janeiro deste ano, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) emitiu a ‘ordem de serviço’ para o início das obras – e também aprovou o pré-projeto do aeroporto. Hoje, dez meses depois, o consórcio concluiu apenas a fundação do terminal de passageiros, a limpeza do terreno e a terraplanagem. A pista de três quilômetros de extensão foi feita ainda durante a gestão da Infraero. Aliás, a certa distância do empreendimento, ela é a única coisa que se consegue enxergar de longe (veja vídeo). Segundo Ibernon Martins Gomes, ex-técnico da estatal e supervisor do aeroporto, a expectativa é que a obra esteja pronta dentro de um ano. “Tudo tem de estar terminado até o final de 2013, para que em 2014 sejam feitos apenas os ajustes”, afirma. Até lá, será preciso que a Anac homologue todas as etapas de execução do projeto. Contudo, segundo o órgão regulador, nenhuma homologação foi feita até o momento.
Burocracia – São muitos os obstáculos que impedem que a obra se transforme em um aeroporto para 6 milhões de passageiros. Fosse apenas o problema da passagem do tempo, que por si só já é grave, alguma solução haveria. O consórcio poderia, por exemplo, instituir três turnos de trabalho para acelerar o cumprimento dos prazos. Mas há questões burocráticas e administrativas que evidenciam dois pontos preocupantes: a falta de preparo do setor público para trabalhar na velocidade exigida e as dificuldades do setor privado – ou seja, dos consórcios – em cumprir requisitos exigidos não só pela Anac, mas também pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que é o grande financiador das obras.
Apesar de o leilão de São Gonçalo ter ocorrido em junho de 2011, a assinatura do contrato de concessão deu-se apenas cinco meses depois. A liberação das licenças ambientais, por sua vez, foi finalizada apenas em julho deste ano. O projeto básico do aeroporto foi apresentado pela empresa à Anac no primeiro trimestre de 2012, mas não foi aprovado até hoje. O prazo da agência para emitir o documento é de seis meses e, sem ele, a obra não pode ser executada com a rapidez necessária. “A aprovação do projeto básico faz parte do contrato de concessão e é indispensável para assegurar a realização das obras por completo”, disse a Anac em comunicado enviado ao site de VEJA. Não bastasse a demora do órgão, o consórcio Inframérica tampouco lhe enviou parte da documentação pedida. Segundo a agência, o grupo tem quinze dias para fazê-lo – prazo que começou a ser contado na semana passada. Com a “papelada” que faltava em mãos, a Anac então terá mais quinze dias para analisá-la. Isso significa que, na melhor das hipóteses, se tudo estiver correto, a aprovação do projeto deverá sair só em novembro – dezessete meses após o leilão.
Sem financiamento – Enquanto a aprovação não sai, as etapas que podem ser executadas são feitas a conta-gotas, mas por outra razão: a falta de financiamento. O plano de negócios do consórcio Inframérica prevê um aporte de 450 milhões de reais para conclusão do aeroporto. Desse total, 405 milhões de reais devem vir de uma linha de financiamento do BNDES destinada apenas a aeroportos concedidos à iniciativa privada. Dos 45 milhões de reais em investimentos sob responsabilidade da empresa até 2014, 20 milhões de reais já foram alocados. E o financiamento do BNDES, que foi pedido em dezembro do ano passado, ainda não foi aprovado.
Procurado pelo site de VEJA, o banco declarou que não dá informações sobre pedidos de financiamento que ainda estão em avaliação. A reportagem apurou, contudo, que a documentação da empresa argentina que compõe o consórciotem sido um entrave para a liberação dos recursos. A informação foi negada pelo diretor do consórcio, Antonio Droghetti. “A informação não procede. Os dois pedidos (para São Gonçalo e Brasília) estão enquadrados e dentro dos prazos normais de financiamentos deste tipo”, garantiu o executivo.
Sócio problemático – O grupo Engevix, que está presente nos setores de energia, mineração, saneamento, construção civil e transportes, é um antigo prestador de serviços para a Infraero – parceria que remonta ao início da década de 1990. Acostumado a trabalhar com a estatal, não à toa se interessou pelas concessões aeroportuárias. Contudo, a empresa encontrou na Argentina um sócio problemático para o Inframérica. 
A Corporación América, que detém 50% do consórcio, administra 48 aeroportos no mundo, sendo 33 apenas no país vizinho. No final do governo do ex-presidente Carlos Menem, na década de 1990, a empresa aproveitou a onda de privatizações e pagou ágios elevados para arrematar uma série de aeroportos – movimento que elevou suas dívidas para cerca de 600 milhões de dólares. Para piorar, o fim da conversibilidade da moeda argentina – isto é, o câmbio, até então de um peso para um dólar, deixou de ser fixo – e o calote da dívida soberana em 2001 deterioraram a situação da empresa. O expressivo endividamento manteve-se dolarizado, mas as receitas do grupo, agora convertidas em pesos desvalorizados, declinaram. Como consequência, a companhia não conseguia honrar os prazos de conclusão de obras aeroportuárias no país e teve de renegociar seus contratos em 2007, durante o governo do ex-presidente Nestor Kirchner. A Corporación teve então de emitir títulos de sua dívida conversíveis em ações ao estado argentino. Com isso, a Casa Rosada abocanhou participação de 20% nos aeroportos do grupo.
Acessos inexistem – Fatores externos também contribuem para que se desconfie da conclusão da obra do aeroporto de São Gonçalo do Amarante em tempo para a Copa do Mundo. O município, apesar de ficar próximo de Natal, possui apenas dois acessos. Para se chegar até a via que o interliga ao aeroporto, é preciso passar por dentro do perímetro urbano – inclusive por uma rua com grande movimento de pedestres. Entre a cidade e o projeto, a única estrada que existe é uma coberta de cascalho e com seis quilômetros de extensão. No que compete ao aeroporto, a única tarefa do governo do Rio Grande do Norte é viabilizar os meios para se chegar até ele. Contudo, até o momento, não há o menor sinal de obras na região.
A governadora do estado, Rosalba Ciarlini (DEM-RN), não concedeu entrevista ao site de VEJA. Informações colhidas junto a interlocutores revelam, no entanto, que ela tem demonstrado grande preocupação com a possibilidade de Natal não conseguir cumprir sua parte nas obras de mobilidade e infraestrutura para a Copa. Em entrevista ao site de VEJA, Demétrio Torres, que é secretário de assuntos relacionados à Copa no governo potiguar, afirmou que as licitações para os acessos a São Gonçalo do Amarante já foram feitas e que as obras devem começar em breve. “Tudo ficará pronto dentro do previsto. Estamos trabalhando para isso”, afirmou.
A construtora Queiroz Galvão será responsável pela obra, que deve ligar o aeroporto às rodovias BR 406, BR 304 e BR 226. Os recursos necessários, da ordem de 72 milhões de reais, ainda dependem de assinatura de contrato com a Caixa Econômica Federal (CEF). “Só estamos esperando essa assinatura para dar início às obras”, garantiu Torres. 
Na avaliação do presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte (Fiern), Amaro Sales de Araújo, a inexistência de um acesso logístico de qualidade é até mesmo mais preocupante que a execução das obras aeroportuárias em si. “Você não pode ter um aeroporto como esse sem um acesso do mesmo nível. Nós nos colocamos à disposição do governo para ajudar no que fosse necessário. Mas o governo garante que está tudo sob controle”, afirma Araújo.
Desapropriações – O estado tampouco resolveu o problema da desapropriação da área do novo aeroporto, que remonta a 1996 e até hoje é contestada na Justiça. O governo estadual desapropriou 1 500 hectares que pertenciam a cerca de 300 proprietários, alegando se tratar de terra improdutiva. O preço fixado à época era de 2 milhões de reais por todo o local. Ao longo da década, o governo conseguiu negociar com alguns ex-proprietários e já desembolsou 3 milhões de reais em indenizações. Contudo, há mais de um terço do território que ainda é alvo de disputa judicial.
O advogado de uma das partes, Igor Steinbach, afirma que tem havido muito pouco esforço do governo em concluir as negociações. Seu cliente, Bernardo Meirelles, contabiliza quase 500 hectares de terras desapropriadas. Segundo a última perícia feita, apenas esse pedaço de terra deveria ter sido avaliado em 2,5 milhões de reais. Com as correções feitas ao longo de dezesseis anos, esse valor gira atualmente em torno de 10 milhões de reais. “O governo tem condições de fazer acordo com base no valor da perícia. Se não houver acordo, vamos entrar com uma ação popular que poderá até mesmo acarretar a suspensão das obras do aeroporto”, afirma Steinbach.
Fonte: VEJA

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